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_ 2012 _NOEMI JAFFE

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Eu aconteceu alguma coisa. Antes de isso aconteceu, eu não imaginava que iria aconteceu assim. Estava quase, prestes a aconteceu e eu não sabia. Isso era antes. Antes de tudo isso ter aconteceu. Só agora, depois de tudo, é que eu soube que houve antes. Mas antes, na hora mesmo de ser antes, eu não sabia. O antes, só depois é que se sabe. O antes não se sabe nem enquanto dura. E depois de tudo, o antes acaba e então ele nunca existiu. Mas tudo mesmo existe só antes de aconteceu.  E agora, agora mesmo, estou mordendo este fato. Este fato está me mordendo. Só sobrou um fato. Não é uma coisa; é um fato. Antes não, antes estava tudo aconteceu.

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Ele disse que só é possível realmente perceber as coisas devagar. Aos poucos, ele disse. Que eu demoraria a me dar conta de tudo. E agora é ele que eu mal consigo perceber. Quando ele disse isso, não sabia que seria ele mesmo objeto da demora, que ninguém conseguiria percebê-lo. Se ele soubesse, talvez dissesse que não, que gostaria que tudo fosse sempre percebido rápido, que tudo acontecesse sempre de uma vez. Perceber as coisas aos poucos e demoradamente era aparentemente difícil, mas ele dizia que só assim é que seria real. Agora, que ele é o real, sei que ele gostaria que eu o visse de uma só vez. E eu não o vejo.

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A sorte é um lance. Em português, sorte é boa sorte. Em francês, hazard é acaso. Em português, azar é má sorte. Em inglês, luck não é boa nem ruim, mas lucky é quem teve boa sorte. Para ocasiões neutras, o melhor, em português, é a palavra acaso. Em inglês e em francês, chance é acaso. Em português, chance é oportunidade. É bom. Happy, em inglês, é quem teve boa sorte. Happen, que é acontecer, em inglês, vem de sorte, mas não boa sorte, só o acaso mesmo. Acontecimento, em português, vem de contingere, que é uma contingência. O acaso é só uma contingência, que é uma reunião de forças do tempo e do espaço, que confluem num mesmo instante.

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Quando tudo se apaga, e você espera, depois de algum tempo começa a enxergar as coisas. Já não é mais tão escuro. Quando tudo se acende, logo você enxerga tudo, mas se esperar um pouco, começa a não enxergar mais nada. Ou você não enxerga nada logo de cara, ou você não enxerga nada depois de um tempo. Para sempre enxergar tudo por tempo indeterminado, as coisas não podem nem estar muito apagadas, nem muito acesas. Mas quando se enxerga tudo o tempo todo, o efeito da visão prolongada e sistemática das coisas é que também não se as veja nunca de novo e elas passam a não existir. Para ver mesmo as coisas, só se for quando os olhos viram mãos.

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Respingo é quando a própria coisa pinga. Borrifo não. Daí é quando alguém respinga na coisa. Derramar pode ser da coisa mesmo, em ação espontânea, ou de alguém que involuntária ou voluntariamente permite que algum líquido verta. Verter, para líquidos, é com muita precisão. Derramar não. É sem precisão e sem propósito. É um tipo de acidente do líquido. Espargir é um pouco diferente de borrifar, porque parece ter ainda mais precisão e tem certa conotação sagrada. Despejar é para líquidos, mas para outras substâncias também. Deitar fora é para líquidos e sólidos, mas é muito mais bonito que despejo ou borrifo. Também existe entornar, correr e cair, que, nesse caso, é para líquidos excessivos, como cachoeiras e cataratas.

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Eu ouvia as pessoas dizendo a palavra meio, mas nunca soube exatamente o que era. No céu eu não me sentia no meio. Nem meio de transporte, nem meio de comunicação, nem meio do caminho, nem meio que justifica algum fim. Eu pensava que o céu à minha frente não era um lugar; lá não existia lugar, então era impossível que algo acontecesse, porque se não existe espaço, também se elimina o tempo, eu pensava. Os habitantes do céu não moram nele; o céu apenas permite que eles fiquem por lá. Não gostava quando diziam que o céu era um meio. Não entendia direito e do pouco que entendia, eu discordava. Na minha opinião, isso era como uma simplificação, um insulto ao céu. 

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Como você não consegue separar as coisas? Veja bem: isso é isso e aquilo é aquilo. Não é claro? Por que você confunde tudo? Mesmo que algumas coisas se pareçam, até excessivamente, ainda assim, se você for cuidadoso, vai perceber que elas jamais são iguais. Na verdade, sua mania de misturar alhos com bugalhos, para mim, é uma questão de teimosia ou até mesmo um sistema defensivo, porque, na realidade, você não aceita as diferenças. Você quer que tudo permaneça sempre igual e então arma esse escudo da distração, da confusão e chega até a convencer os outros. Se você quiser saber o que eu realmente penso, acho que sua intenção mesmo é se exibir.

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O tempo é o movimento no espaço. Se só houvesse repouso, não haveria tempo. Mas mesmo aquilo que parece estar em permanente repouso, está em estado de tensão oculta e lá o movimento também se agita. Quanto menor o movimento, menor a percepção do tempo. Se pouco espaço é coberto, o tempo se contrai até se tornar imperceptível; mas quando se percorrem grandes distâncias e o movimento é muito, ele se expande e acelera e fica por um fio de se romper. Grandes embarcações procuram enganar o tempo, fingindo que não se movimentam, querendo assim impedi-lo do passar. Pequenas embarcações também tentam escapar às garras do tempo, pensando passar despercebidas por entre elas.

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Eu me belisquei e não adiantou nada, porque tudo ainda parece um sonho. Sei que não é, mas sabê-lo não muda a sensação. E o pior é que não é sonho no sentido onírico, embora todo sonho seja onírico. Mas as pessoas usam a palavra onírico com um sentido poético, metafórico. E agora não. É como um sonho mesmo, não chegando a ser um pesadelo, porque nada é suficientemente pesado ou dramático. Sabe quando você não consegue distinguir o que é real do que não é e as coisas ficam num estado de torpor, tonteira e mesmo assim, tudo é verdadeiro? Eu sempre me perguntei o que era a verdade e agora eu sei. Ela não tem definição e eu sei exatamente o que é, porque estou dentro dela e ela parece um sonho.

 

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Textos feitos a partir das pinturas da série "Acidente"

Publicado no catálogo da exposição "Acidente", 2012, Galeria Millan, São Paulo

 

 

by arteninja