.....
_ 2023 _ANTONIO GONÇALVES FILHO

 

TATIANA BLASS EM DIÁLOGO COM GIACOMETTI, IBERÊ E BECKETT

Na segunda edição da feira ArPa, a premiada artista Tatiana Blass (prêmios Pipa e Cisneros Art Foundation) apresenta quatro conjuntos de trabalhos (telas, pinturas em vidro, esculturas, cerâmicas) em que dialoga com nomes consagrados do passado e promove a transposição de obras de linguagens artísticas diversas, entre elas a do dramaturgo irlandês Samuel Beckett.

O teatro, afinal, sempre esteve presente de uma maneira ou de outra na obra da pintora. Se, em 2008, Tatiana realizou uma série de pinturas em que o aspecto cenográfico era evidente (holofotes em palcos vazios), nesta exposição ela retoma a obra de Beckett em outro contexto, aprofundando o tema do fracasso presente na peça “Fim de Partida”, um balanço pessimista do pós-guerra (a peça é de 1957) que se passa num abrigo. 

Os “sobreviventes” dessa catástrofe apocalíptica, que observam o mundo através de uma luneta, correspondem mais ou menos aos personagens das esculturas recentes em que Tatiana recorre mais uma vez aos personagens confinados nesse abrigo criado por Beckett. Eles são representados numa alegoria da morte em vida, com seus corpos consumidos pelo tempo e se esvaindo com o derretimento da cera que os recobre.

Esses corpos são representações metafóricas dos “tempos líquidos” em que vivemos, para usar uma expressão de Zygmunt Bauman. Mais: têm muito a ver com o legado existencialista de Giacometti, que representou em sua escultura o homem no limiar de seu desaparecimento, decretado pela tragédia atômica de Hiroshima.

Enquanto Giacometti subtraiu desses corpos a massa, conferindo a essas figuras um aspecto esquálido, à beira da extinção, o pintor gaúcho Iberê Camargo, estreitamente vinculado à tradição europeia metafísica, optou por caminho semelhante, mas acentuando a forma: numa série derradeira de Iberê, “As Idiotas” (1991), a paralisação trágica das figuras abandonadas à própria sorte é representada por figuras cujo peso cede à gravidade.

Personagens da série “Os Sentados”, de Tatiana Blass, estabelecem uma correspondência analógica com as “idiotas” de Iberê Camargo, conservando a mesma dimensão trágica da paralisia das confinadas criaturas beckettianas de “Fim de Partida”. O espectador se torna testemunha desse derretimento, tanto nas esculturas como nas pinturas.

Tatiana, no entanto, introduz o humor nesse mundo marcado pela tragédia. Ou melhor: um cenário felliniano em que essas figuras se movem, fixadas no esmalte sintético sobre vidro, o avesso das pinturas em tela. “Lona”, de 2021, sintetiza como nenhuma outra o patético dessa experiência existencial difusa de um tempo que já não mais entende o sentido da tragédia, embora seja essencialmente trágico.

Outra novidade no trabalho de Tatiana apresentado na Arpa é sua ligação com a ancestral técnica da cerâmica, aqui enriquecida pela experiência da artista como pintora. Vale observar que a experiência afirmativa da nova ordem cromática desses trabalhos contrasta com o deliberado apagamento das figuras de telas de 2009/2010, cujo sentido convergia para a dissolução dos personagens na pintura de Sean Scully, também sinônimo de uma finitude incontornável. 

 

ANTONIO GONÇALVES FILHO

 

by arteninja